sábado, 22 de janeiro de 2011

A Barca dos Mortos 1. Uma nova vida.

A tempestade começou há cerca de 15 horas. Assim que a viram os pescadores rumaram de volta para a costa, mas as docas ainda eram pequenos pontos no horizonte quando a pequena vela de seu barco se rompeu, deixando-os a deriva em meio à tormenta. A princípio acharam seu destino seria morrer de sede e fome, mas há meia hora o barco, que já se chocava débil contra as ondas, se partiu ao meio frustrando suas expectativas. Em poucos minutos a maré violenta dispersou a tripulação, e agora um dos pescadores está dançando com as ondas e engolindo água, em algum lugar entre a vida e a morte, apenas semi-consciente do que acontece ao seu redor. Nesta hora ele enxerga à sua frente os momentos mais importantes de sua vida, como se sua alma tentasse, pela última vez, se agarrar ao que lhe resta dessa terra.

Ele tem 6 anos e seu nome é Jonas. É final da tarde no vilarejo Porto da Passagem, e o céu vai se tingindo de laranja. Jonas está ao lado de seu pai, e ao seu redor há várias pessoas que ele não conhece. À frente de Jonas há um caixão sendo baixado para sua sepultura, dentro dele há uma mulher, sua mãe.
É sua única lembrança dela.
Após o enterro Jonas e o pai voltaram calados para casa, e assim permaneceram durante várias horas, até o pai coloca-lo para dormir. Alguns anos depois ele lembraria desse dia, e da feição inexpressiva de seu pai.
Esta é sua lembrança mais antiga.
Jonas agora tem 13 anos e não quer se tornar um pescador como o pai. Ele soube que os filhos de alguns comerciantes locais foram mandados a outras cidades para estudar, e considerou essa a melhor opção para sua vida. Naquela noite Jonas sentou para jantar com o pai e contou o que sentia, falou que gostaria de viajar para estudar em outra cidade, assim como fizeram os filhos dos comerciantes. Seu pai fechou a cara, e permaneceu calado durante o resto do jantar.
Ao final lhe disse que, com o dinheiro que ganha como pescador, jamais poderia pagar sua passagem para outras terras, quanto mais seus estudos. Explicou que não se pode ter tudo o que deseja, e tentou lhe convencer a ir ao porto no dia seguinte.

"Não é o melhor trabalho do mundo, mas pelo menos não falta serviço. Você já está ficando adulto, deveria aprender também. Quem sabe acaba gostando." - Jonas jamais foi.

Quatro anos depois Jonas se tornara um ladrão formidável. Desde os quinze anos praticava pequenos furtos, começou com coisas sem valor, e agora furtava de comerciantes do mercado local e até de algumas casas com relativa facilidade. Apesar disso, a prática não lhe apetecia, e não pretendia levar a vida fazendo isso, roubava apenas para ter alguma chance de sair de Porto da Passagem, sonho que já alimentava há alguns anos. Mas mesmo os comerciantes e cidadãos mais abastados do local não possuíam bens que valessem o bastante para cobrir seus objetivos, para isso precisava de algo valioso, e que pudesse vender com facilidade.
Essa chance apareceu certa noite no bar da estalagem local, quando um jardineiro, bêbado, falava, para quem quisesse ouvir, das jóias da filha do barão.

O homem que ficaria conhecido pelos populares como barão, se mudou para Porto da passagem há poucos anos, e construiu sua mansão afastada do resto da população, no alto de uma colina. No início correram boatos no local de que ele teria comprado as terras onde ficava o povoado, mas após um tempo sem que nada mudasse as pessoas esqueceram e o chamavam de barão apenas pelo tamanho de sua casa, e por não terem idéia de qual seria realmente seu nome.

E foi na casa deste homem que Jonas fez seu último roubo em Porto da Passagem.
Foi tudo planejado para aquele dia, sabia onde tinha de ir e o que tinha de fazer. Entraria no quarto da filha pela sacada, estariam todos dormindo, levaria uma quantia suficiente de jóias, e partiria dali para sempre.
E assim foi, subiu a colina que isolava a mansão das demais residências do lugarejo. O muro era alto, mas tudo naquela noite parecia fácil, "Um golpe, e estou fora" era tudo em que conseguia pensar. Invadiu o terreno por uma árvore na parte leste do muro, conforme o jardineiro havia lhe informado, após ter sido bem pago para isso, e através da mesma árvore ele conseguiu alcançar a sacada, por onde entraria no quarto da filha do Barão. Quando se preparava para destrancar a porta, ouviu algo que contraiu suas entranhas de maneira hedionda.

"Peraí, deixa que eu abro para você"

Do outro lado da porta, uma menina negra, de não mais do que dezessete anos encarava divertida o jovem ladrão, que a olhava mortificado. Ainda rindo, ela prosseguiu
"Hum, acho que eu deveria estar dormindo, digo, acho que é o que você esperava" enquanto puxava o rapaz para dentro.
"Mas as coisas não estão indo bem como planejou, quero dizer, os guardas já viram você, e estão te procurando no jardim. Provavelmente estão procurando dentro de casa também, felizmente eu conheço o lugar melhor do que você, então vamos sair logo daqui".
O quarto onde entraram era bem simples, branco e limpo: cama, armário, mesa; Nenhum lugar onde se esconder. Mas enquanto Jonas ainda examinava, atordoado, a situação, a garota já abrira um alçapão sobre eles, por onde subiram para o sotão da Mansão. O lugar era absolutamente escuro, mas ela os guiou para uma escadaria, desceram por ela até o subsolo, e então subiram outro lance de escadas que os levou para fora dos muros. Onde finalmente o rapaz conseguiu abrir a boca.
Após alguns instantes sem conseguir falar nada, articulou seus grunhidos em algo parecido com:
"Por que me ajudou a escapar?"

"Não deveria?" Ela riu. "Não sei, gostei de você quando te vi pela janela, e você não é do tipo que eu gostaria de ver preso. Você não tem cara de ladrão, e você nem ao menos é bom nisso"
Mais constrangido do que imaginou que terminaria esta noite, Jonas disse simplesmente "Não é como se restassem muitas opções para quem não pretende passar a vida pegando sol e cheirando a peixe"
"Ainda acho que você não tem cara de ladrão, e não leva jeito para a coisa" Ela sorriu, parecendo se divertir ao zombar do delinquente frustrado. "Não sei por que, não tenho nenhum motivo especial para gostar de você, muito pelo contrário, aliás. Mas minhas atitudes nem sempre fazem muito sentido, e eu realmente não gostaria de te ver preso"
E apenas nesse momento Jonas prestou atenção às feições de sua salvadora
"Tenho de ir, daqui a pouco encontram meu quarto vazio, e você acabará respondendo por sequestro. Boa noite, vê se fica longe de confusão por um tempo"
Quando a garota já havia se virado para voltar, Jonas conseguiu balbuciar uma última pergunta:
"Qual seu nome?"

Mas ela apenas sorriu para ele e desceu as escadas.

Jonas fugiu pela floresta, sem conseguir parar de pensar no estranho encontro que tivera, e pela primeira vez lhe pareceu interessante, talvez, levar uma vida honesta. Mas logo após chegar em casa, enquanto ainda pensava em começar uma nova vida, seu pai chegou com a guarda do Barão.
E sua nova vida foi adiada por três anos.
Do tempo que passou na prisão, Jonas só tinha uma lembrança relevante. Seu pai sentado à frente de sua cela. Quieto. Inexpressivo. Ele então se via novamente com seis anos, indo para casa, após o enterro de sua mãe. Mas quando voltava à cela, sozinho, seu pai gritava em silêncio.

"Não importa se você é meu filho. Eu não vou esconder a porra de um ladrão na minha casa"

E quando se lembrava do enterro da sua mãe, na volta o pai lhe dizia.

"Não importa se você é meu filho. Eu não vou esconder a porra de um ladrão na minha casa"

E foi isso que Jonas ouviu todos os dias em que esteve preso, sem que o pai tenha dito uma palavra sequer.
Três anos se passaram. Seu pai aceitou que Jonas voltasse a morar em sua casa, caso levasse uma vida digna e trabalhasse junto dele. Se conformou, então, em levar uma vida tranquila com seu pai. Isso aconteceu há seis meses.

Agora, enquanto espera a morte em alto mar pensa por um momento no quão irônico foi esperar três anos para começar uma nova vida, e ela agora acabar tão rápido. Jonas está tonto, bebeu muita água, aos poucos para de sentir as extremidades de seu corpo.
Vai percebendo que fica cada vez mais díficil respirar.
Fecha os olhos. E começa a ouvir novamente a voz do pai.

"Não importa se você é meu filho. Eu não vou esconder a porra de um ladrão na minha casa"

Que então se transforma na voz da misteriosa menina da mansão.

"Você não tem cara de ladrão, e você nem ao menos é bom nisso"

Jonas sente algo bater em suas costas, e vê a menina e seu pai sentados em um barco, lhe atirando uma corda, não conseguiriam lhe puxar para fora da tempestade, provavelmente morreriam ali como ele. Mas quando se está perdido qualquer saída é uma boa saída, por mais absurda que seja. Ele se agarra à corda com todas as suas forças, e começa a ser puxado.
De súbito tudo fica escuro.
Quando abre os olhos a menina e seu pai não estão lá, todo seu campo de visão está fora de foco, mas Jonas não está mais na água. Seus sentidos tentam se re-ordenar, sem sucesso, não consegue reconhecer nenhuma das pessoas ao seu redor, mas um homem de cabelos compridos lhe chama atenção, ele olha para o rapaz e diz.

"Bem vindo à barca dos mortos."