terça-feira, 14 de julho de 2009

Meu caos posto à mesa

À noite te conheci, e dela te pintei em preto. Por ela sempre me acompanhaste, a figura negra, uma sombra esguia sempre a me lembrar da minha melancolia e angústia, e de tanto te ouvir, de você eu me vesti, e negro fiquei, assim como você. Em ti eu me tornei, e em você eu me fechei em sombras. E me afoguei em sua companhia, como se em um manto escuro. E como veio você se foi, evanesceu. E nasceu o dia, e longo foi ele até que eu pudesse te reencontrar, e, sinceramente, a sua falta eu não senti.

Mas você voltou, caminhando ao meu lado, e de preto novamente eu te pintei, mais escuro do que você jamais foi, para que cobrisse a minha visão, mais melancólica, mais fria, mais suja, e com você então eu fui mais só do que jamais fora.

E da minha solidão você bebeu, e de você mais um nasceu, e esse eu pintei com o veneno que sai da minha boca, das minhas palavras nasceu o verde, e deste te fiz, e para poluir minhas idéias para sempre ao meu lado andou também, e pelos meus caminhos sempre vocês me levavam.

E dos meus dois demônios juntos nasceu o terceiro, o veneno precisava de força, e a melancolia sozinha não era capaz de lhe dar, da negra angústia surgia a força para o veneno, a fúria outrora contida brotava dos meus poros, e da vermelhidão da minha pele nasceu o meu terceiro demônio. Me cortei, e do meu sangue pintei a tua força, te fiz de um rubro que cobria meus olhos. E com vocês três segui, em vocês me escondi. A toda hora vocês foram a minha companhia, e forma de me lembrar todos os momentos que eu estava só.



De tanto me acompanhar meus demônios viraram parte de mim, todo o caos que eles significavam virou minha rotina, minha melancolia e minha angústia se disfarçaram em um tédio impaciente. E dessa fleuma nasceu o demônio que me acomoda e tenta me impedir de sair do lugar, de branco lhe pintei em homenagem aos meus dias sem cor. E por todos os cantos eles estavam, gritando para mim os meus erros a todos os momentos, me mostrando que nada me restava, que eu já era preterido, e me envenenando com minha fúria e impaciência me impediam até de ouvir quem queria me falar. E aproveitam que me tiram a fome e sentam à mesa para jantar, enquanto conversam amenidades.


terça-feira, 7 de julho de 2009

Vício em decepção

Eu tenho uma faca, achei ela por aí, já faz um tempo. Ela é bonita, brilhante, escura, afiada, mas afiada do que eu achei que fosse. Quando eu achei ela eu afiei, e comecei a tocar minha pele com ela, não cortava. Eu sempre fui sozinho, cresci assim e minha solidão virou minha companhia, até que eu encontrei a minha faca.

Era engraçado, eu fechava os olhos, esquecia que ela estava na minha mão, e deixava roçar minha pele, ela estava tão afiada que que seria capaz de cortar um fio de cabelo ao meio, mas sempre deixou meu corpo imaculado.

E eu deixava que ela me acariciasse com cada vez mais frequência. E com mais força, mais fundo, no limite entre o prazer e a dor, mas eu não me importava, eu sabia que ela não iria me machucar, suas carícias eram mais sinceras que qualquer palavra.

Eu nunca gostei de dor, o meu vício é a confiança mesmo, eu confio até sabendo que não posso confiar, eu confio na mentira, confio por gostar de confiar, eu até me acostumo com a dor da traição, mas eu gosto de confiar assim mesmo. E nela eu sempre confiei, ela nunca me deu motivo para não confiar, até um dia.

O dia em que eu me cortei.

Naquele dia eu jurei pra mim mesmo que nela não mais confiaria, que não a queria mais perto de mim, eu a tiraria da minha vida.
Mas eu não consegui.

Eu me sentia vazio sem poder confiar em ninguém, e foi nela que eu confiei por algum tempo, e apesar da primeira cicatriz eu a trouxe para perto de mim novamente, mais perto do que jamais estivera, eu gostaria de provar pra mim mesmo que poderia confiar nela. E eu podia, achava que podia, sentia que podia, queria poder, e pude. Todo o risco que eu corria era pouco, era nada, perto do alento para as minhas entranhas, o meu vício estava sendo saciado. Cada vez mais, mais fundo, mais forte, fundo, forte, fundo, forte, fundo, forte, fundo, forte. E eu me cortei de novo, me cortei mais fundo, sangrei mais do que jamais imaginei que fosse sangrar, mas eu não conseguia mais não confiar, e aí eu me curei, e voltei a confiar. Voltei a confiar na mentira, voltei a achar que eu não iria me cortar, e me cortei.

E me curei, tentei me afastar, sem sucesso, logo logo ela estava lá, e eu já confiava só por confiar, esperando só pelo momento em que eu iria me cortar, eu sabia que ela me cortaria, mas ainda restava uma esperança vã E várias vezes eu jurei tira-la daqui. Muitas vezes eu não mais a quis. Mas sem ela eu não tinha em quem confiar. E cheguei até aqui confiando na mentira e sangrando.

Confiando e sangrando.

Mais uma tentativa, e não sei se estou disposto a sangrar ainda. Mas o sangue é sempre da mesma cor, o fio da navalha é sempre o mesmo, e a dor é sempre igual, aprende-se a conviver com ela.


*Ficção crianças