terça-feira, 7 de julho de 2009

Vício em decepção

Eu tenho uma faca, achei ela por aí, já faz um tempo. Ela é bonita, brilhante, escura, afiada, mas afiada do que eu achei que fosse. Quando eu achei ela eu afiei, e comecei a tocar minha pele com ela, não cortava. Eu sempre fui sozinho, cresci assim e minha solidão virou minha companhia, até que eu encontrei a minha faca.

Era engraçado, eu fechava os olhos, esquecia que ela estava na minha mão, e deixava roçar minha pele, ela estava tão afiada que que seria capaz de cortar um fio de cabelo ao meio, mas sempre deixou meu corpo imaculado.

E eu deixava que ela me acariciasse com cada vez mais frequência. E com mais força, mais fundo, no limite entre o prazer e a dor, mas eu não me importava, eu sabia que ela não iria me machucar, suas carícias eram mais sinceras que qualquer palavra.

Eu nunca gostei de dor, o meu vício é a confiança mesmo, eu confio até sabendo que não posso confiar, eu confio na mentira, confio por gostar de confiar, eu até me acostumo com a dor da traição, mas eu gosto de confiar assim mesmo. E nela eu sempre confiei, ela nunca me deu motivo para não confiar, até um dia.

O dia em que eu me cortei.

Naquele dia eu jurei pra mim mesmo que nela não mais confiaria, que não a queria mais perto de mim, eu a tiraria da minha vida.
Mas eu não consegui.

Eu me sentia vazio sem poder confiar em ninguém, e foi nela que eu confiei por algum tempo, e apesar da primeira cicatriz eu a trouxe para perto de mim novamente, mais perto do que jamais estivera, eu gostaria de provar pra mim mesmo que poderia confiar nela. E eu podia, achava que podia, sentia que podia, queria poder, e pude. Todo o risco que eu corria era pouco, era nada, perto do alento para as minhas entranhas, o meu vício estava sendo saciado. Cada vez mais, mais fundo, mais forte, fundo, forte, fundo, forte, fundo, forte, fundo, forte. E eu me cortei de novo, me cortei mais fundo, sangrei mais do que jamais imaginei que fosse sangrar, mas eu não conseguia mais não confiar, e aí eu me curei, e voltei a confiar. Voltei a confiar na mentira, voltei a achar que eu não iria me cortar, e me cortei.

E me curei, tentei me afastar, sem sucesso, logo logo ela estava lá, e eu já confiava só por confiar, esperando só pelo momento em que eu iria me cortar, eu sabia que ela me cortaria, mas ainda restava uma esperança vã E várias vezes eu jurei tira-la daqui. Muitas vezes eu não mais a quis. Mas sem ela eu não tinha em quem confiar. E cheguei até aqui confiando na mentira e sangrando.

Confiando e sangrando.

Mais uma tentativa, e não sei se estou disposto a sangrar ainda. Mas o sangue é sempre da mesma cor, o fio da navalha é sempre o mesmo, e a dor é sempre igual, aprende-se a conviver com ela.


*Ficção crianças