sábado, 22 de janeiro de 2011

A Barca dos Mortos 1. Uma nova vida.

A tempestade começou há cerca de 15 horas. Assim que a viram os pescadores rumaram de volta para a costa, mas as docas ainda eram pequenos pontos no horizonte quando a pequena vela de seu barco se rompeu, deixando-os a deriva em meio à tormenta. A princípio acharam seu destino seria morrer de sede e fome, mas há meia hora o barco, que já se chocava débil contra as ondas, se partiu ao meio frustrando suas expectativas. Em poucos minutos a maré violenta dispersou a tripulação, e agora um dos pescadores está dançando com as ondas e engolindo água, em algum lugar entre a vida e a morte, apenas semi-consciente do que acontece ao seu redor. Nesta hora ele enxerga à sua frente os momentos mais importantes de sua vida, como se sua alma tentasse, pela última vez, se agarrar ao que lhe resta dessa terra.

Ele tem 6 anos e seu nome é Jonas. É final da tarde no vilarejo Porto da Passagem, e o céu vai se tingindo de laranja. Jonas está ao lado de seu pai, e ao seu redor há várias pessoas que ele não conhece. À frente de Jonas há um caixão sendo baixado para sua sepultura, dentro dele há uma mulher, sua mãe.
É sua única lembrança dela.
Após o enterro Jonas e o pai voltaram calados para casa, e assim permaneceram durante várias horas, até o pai coloca-lo para dormir. Alguns anos depois ele lembraria desse dia, e da feição inexpressiva de seu pai.
Esta é sua lembrança mais antiga.
Jonas agora tem 13 anos e não quer se tornar um pescador como o pai. Ele soube que os filhos de alguns comerciantes locais foram mandados a outras cidades para estudar, e considerou essa a melhor opção para sua vida. Naquela noite Jonas sentou para jantar com o pai e contou o que sentia, falou que gostaria de viajar para estudar em outra cidade, assim como fizeram os filhos dos comerciantes. Seu pai fechou a cara, e permaneceu calado durante o resto do jantar.
Ao final lhe disse que, com o dinheiro que ganha como pescador, jamais poderia pagar sua passagem para outras terras, quanto mais seus estudos. Explicou que não se pode ter tudo o que deseja, e tentou lhe convencer a ir ao porto no dia seguinte.

"Não é o melhor trabalho do mundo, mas pelo menos não falta serviço. Você já está ficando adulto, deveria aprender também. Quem sabe acaba gostando." - Jonas jamais foi.

Quatro anos depois Jonas se tornara um ladrão formidável. Desde os quinze anos praticava pequenos furtos, começou com coisas sem valor, e agora furtava de comerciantes do mercado local e até de algumas casas com relativa facilidade. Apesar disso, a prática não lhe apetecia, e não pretendia levar a vida fazendo isso, roubava apenas para ter alguma chance de sair de Porto da Passagem, sonho que já alimentava há alguns anos. Mas mesmo os comerciantes e cidadãos mais abastados do local não possuíam bens que valessem o bastante para cobrir seus objetivos, para isso precisava de algo valioso, e que pudesse vender com facilidade.
Essa chance apareceu certa noite no bar da estalagem local, quando um jardineiro, bêbado, falava, para quem quisesse ouvir, das jóias da filha do barão.

O homem que ficaria conhecido pelos populares como barão, se mudou para Porto da passagem há poucos anos, e construiu sua mansão afastada do resto da população, no alto de uma colina. No início correram boatos no local de que ele teria comprado as terras onde ficava o povoado, mas após um tempo sem que nada mudasse as pessoas esqueceram e o chamavam de barão apenas pelo tamanho de sua casa, e por não terem idéia de qual seria realmente seu nome.

E foi na casa deste homem que Jonas fez seu último roubo em Porto da Passagem.
Foi tudo planejado para aquele dia, sabia onde tinha de ir e o que tinha de fazer. Entraria no quarto da filha pela sacada, estariam todos dormindo, levaria uma quantia suficiente de jóias, e partiria dali para sempre.
E assim foi, subiu a colina que isolava a mansão das demais residências do lugarejo. O muro era alto, mas tudo naquela noite parecia fácil, "Um golpe, e estou fora" era tudo em que conseguia pensar. Invadiu o terreno por uma árvore na parte leste do muro, conforme o jardineiro havia lhe informado, após ter sido bem pago para isso, e através da mesma árvore ele conseguiu alcançar a sacada, por onde entraria no quarto da filha do Barão. Quando se preparava para destrancar a porta, ouviu algo que contraiu suas entranhas de maneira hedionda.

"Peraí, deixa que eu abro para você"

Do outro lado da porta, uma menina negra, de não mais do que dezessete anos encarava divertida o jovem ladrão, que a olhava mortificado. Ainda rindo, ela prosseguiu
"Hum, acho que eu deveria estar dormindo, digo, acho que é o que você esperava" enquanto puxava o rapaz para dentro.
"Mas as coisas não estão indo bem como planejou, quero dizer, os guardas já viram você, e estão te procurando no jardim. Provavelmente estão procurando dentro de casa também, felizmente eu conheço o lugar melhor do que você, então vamos sair logo daqui".
O quarto onde entraram era bem simples, branco e limpo: cama, armário, mesa; Nenhum lugar onde se esconder. Mas enquanto Jonas ainda examinava, atordoado, a situação, a garota já abrira um alçapão sobre eles, por onde subiram para o sotão da Mansão. O lugar era absolutamente escuro, mas ela os guiou para uma escadaria, desceram por ela até o subsolo, e então subiram outro lance de escadas que os levou para fora dos muros. Onde finalmente o rapaz conseguiu abrir a boca.
Após alguns instantes sem conseguir falar nada, articulou seus grunhidos em algo parecido com:
"Por que me ajudou a escapar?"

"Não deveria?" Ela riu. "Não sei, gostei de você quando te vi pela janela, e você não é do tipo que eu gostaria de ver preso. Você não tem cara de ladrão, e você nem ao menos é bom nisso"
Mais constrangido do que imaginou que terminaria esta noite, Jonas disse simplesmente "Não é como se restassem muitas opções para quem não pretende passar a vida pegando sol e cheirando a peixe"
"Ainda acho que você não tem cara de ladrão, e não leva jeito para a coisa" Ela sorriu, parecendo se divertir ao zombar do delinquente frustrado. "Não sei por que, não tenho nenhum motivo especial para gostar de você, muito pelo contrário, aliás. Mas minhas atitudes nem sempre fazem muito sentido, e eu realmente não gostaria de te ver preso"
E apenas nesse momento Jonas prestou atenção às feições de sua salvadora
"Tenho de ir, daqui a pouco encontram meu quarto vazio, e você acabará respondendo por sequestro. Boa noite, vê se fica longe de confusão por um tempo"
Quando a garota já havia se virado para voltar, Jonas conseguiu balbuciar uma última pergunta:
"Qual seu nome?"

Mas ela apenas sorriu para ele e desceu as escadas.

Jonas fugiu pela floresta, sem conseguir parar de pensar no estranho encontro que tivera, e pela primeira vez lhe pareceu interessante, talvez, levar uma vida honesta. Mas logo após chegar em casa, enquanto ainda pensava em começar uma nova vida, seu pai chegou com a guarda do Barão.
E sua nova vida foi adiada por três anos.
Do tempo que passou na prisão, Jonas só tinha uma lembrança relevante. Seu pai sentado à frente de sua cela. Quieto. Inexpressivo. Ele então se via novamente com seis anos, indo para casa, após o enterro de sua mãe. Mas quando voltava à cela, sozinho, seu pai gritava em silêncio.

"Não importa se você é meu filho. Eu não vou esconder a porra de um ladrão na minha casa"

E quando se lembrava do enterro da sua mãe, na volta o pai lhe dizia.

"Não importa se você é meu filho. Eu não vou esconder a porra de um ladrão na minha casa"

E foi isso que Jonas ouviu todos os dias em que esteve preso, sem que o pai tenha dito uma palavra sequer.
Três anos se passaram. Seu pai aceitou que Jonas voltasse a morar em sua casa, caso levasse uma vida digna e trabalhasse junto dele. Se conformou, então, em levar uma vida tranquila com seu pai. Isso aconteceu há seis meses.

Agora, enquanto espera a morte em alto mar pensa por um momento no quão irônico foi esperar três anos para começar uma nova vida, e ela agora acabar tão rápido. Jonas está tonto, bebeu muita água, aos poucos para de sentir as extremidades de seu corpo.
Vai percebendo que fica cada vez mais díficil respirar.
Fecha os olhos. E começa a ouvir novamente a voz do pai.

"Não importa se você é meu filho. Eu não vou esconder a porra de um ladrão na minha casa"

Que então se transforma na voz da misteriosa menina da mansão.

"Você não tem cara de ladrão, e você nem ao menos é bom nisso"

Jonas sente algo bater em suas costas, e vê a menina e seu pai sentados em um barco, lhe atirando uma corda, não conseguiriam lhe puxar para fora da tempestade, provavelmente morreriam ali como ele. Mas quando se está perdido qualquer saída é uma boa saída, por mais absurda que seja. Ele se agarra à corda com todas as suas forças, e começa a ser puxado.
De súbito tudo fica escuro.
Quando abre os olhos a menina e seu pai não estão lá, todo seu campo de visão está fora de foco, mas Jonas não está mais na água. Seus sentidos tentam se re-ordenar, sem sucesso, não consegue reconhecer nenhuma das pessoas ao seu redor, mas um homem de cabelos compridos lhe chama atenção, ele olha para o rapaz e diz.

"Bem vindo à barca dos mortos."




sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

5. O início - A morte.

Faça um favor a si mesmo e comece pela primeira parte





E então, após um tempo à deriva no tempo-espaço, o bar aportou em um mundo em gestação. Um mundo tão perdido em seus passos quanto a janela que lhe deu origem, para que tivesse algo para mostrar. Ironia que o mundo recém criado tenha ainda tão pouco a exibir. Mas irônica mesmo é a pessoa escolhida pelo acaso para ser a primeira a explorar o local. E ironia é um dos assuntos de que trata essa história.

Hipocrisia nada entende de ironia, na verdade ela não entende de muitas coisas. Não entende nada de magia, morte ou janelas, e tampouco entende da gestação de um universo. Na verdade, poucas são as coisas das quais ela entende. Ela não entende nem mesmo porque pensa, faz, e diz a maior parte das coisas. Embora em sua cabeça tudo pareça lógico e correto. É uma ironia que Hipocrisia seja tão inocente.
Todos os comportamentos que finge para si mesma, são máscaras que ela criou para se esconder. E seguiu toda a sua existência acreditanto apenas no que queria. Mas o acaso nada tem com isso, e suas escolhas tem tanto fundamento quanto as dela. Ele não faz questão que tenham.

Enquanto Hipocrisia permanecia sentada a uma mesa do bar, próxima ao gato vesgo, observando O mago sair pela janela, o mundo bebê dava seus primeiros passos. O mago, ao sair pela janela, se afastou por uns instantes, olhou para trás e percebeu que havia não só uma janela ali, mas também as paredes do bar, e que tudo isso estava muito mais longe do que deveria, e concluiu que, por hora, o melhor seria voltar pela janela. O mago não sabia o que estava acontecendo, ele entendia tanto de mundos recém criados quanto entendia de janelas, mas conseguiu voltar à janela do bar.

Apesar de perigoso, o jovem mundo era o menos culpado de todos nessa história. Ele não pediu para nascer, mas era necessário que houvesse algo a ser mostrado através da janela. E agora esse mundo bebê tentava se firmar em seu próprio tempo e espaço, assim como uma criança recém nascida tenta balbuciar algumas sílabas, e emitir alguns grunhidos, para se fazer entender, e fazia isso com tanto sucesso quanto. É por isso que ao sair do bar, e dar uns poucos passos, O mago se viu tanto longe de onde viera, o mundo ainda não conseguira ordenar suas dimensões, e ainda levaria algum tempo para isso, quem saísse pela janela durante esse período estava sujeito a se perder.

João, o construtor, não sabia dessas coisas, mas ainda assim preferia não arriscar sair dali, embora até algumas horas atrás essa fosse a sua vontade. O mago entendera que não havia mais nada que pudesse fazer, então continuaria no bar, como sempre fez desde que foi condenado. O gato vesgo presume que se O mago não arrisca permanecer lá fora por muito tempo, tampouco ele deveria sair, pois mesmo que seja mais responsável que o próprio mago, ele infelizmente tem bem menos poder. Por outro lado, Hipocrisia sempre se recusou a perceber o que acontecia ao seu redor, preferindo acreditar no que queria. Achou então que ela poderia dar uma volta, se quisesse, por esse novo mundo, após passar tanto tempo no bar. E então ela foi.

O medo que João tinha de sair do bar era o suficiente para impedi-lo de faze-la voltar, enquanto O mago não só preferia ficar no bar para não encarar esse novo mundo, como também estava contente em se livrar da pequena Hipocrisia. Apenas o gato vesgo ponderava se valia o risco ir
atrás da pobre moça. Mas enquanto ele apenas começava a pensar no assunto, Hipocrisia dava
seus primeiros passos.

Um;
Dois;
Três...
E antes de alcançar o quarto já estava longe demais para ser vista. Longe demais para ver o bar. Longe demais para voltar.

E então ela se apavorou.

Ela não conseguia contornar esse medo, como sempre fez. Ela pôde, por toda a sua existência, esconder seus medos de si mesma, tentar fingir, para os outros e para si, que eles não existiam. Mas não havia ninguém para quem ela precisasse fingir agora, não encontrava em seus pensamentos alguma verdade que pudesse sobrepor a de estar perdida, de não saber que direção tomar para voltar. De passar o resto de sua vida ali. Só não sabia ela o quão breve seria isso.

E seguiu caminhando sem rumo. Ao fim de vinte e quatro horas a fome e a sede já a incomodavam, depois do que seriam dois dias já pareciam insuportáveis. Ao quarto dia a menina desmaiou e ali permaneceu até ser consumida pelo novo mundo. E foi assim que a morte chegou a um mundo que acabara de nascer.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Meios sem fins.

Tenho em minha mão, escrito obsessão;
Tateando em vão, por morros sem cumes.
Guardo em minha mente, desejo latente;
Pelo que é aparente, como meios sem fins.

Talvez a profundidade do silencio,
Seja aquilo que eu preciso saber,
Para descer então por ele
Olhar em seus olhos e aí então, ver.

Então quem sabe fatal, ilusão sem moral.
Ser de fato imortal, um deus ateu.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

4. O início, ou quase - Sobre magia e janela.

Não comece por aqui, sim? Comece pela Primeira parte






Um dos assuntos mais comentados em velórios é a aparência do morto, a falta de conhecimento que as pessoas tem acerca da morte é a causa desses comentários frívolos. Da mesma forma, muitos mágicos, feiticeiros, bruxos, magos e afins costumam ligar janelas à magia, também pela falta de conhecimento acerca da natureza das janelas.
Magia é magia. Janela é janela. A magia é uma arte complexa, que serve a diversos fins, não cabe a essa breve introdução dissertar a respeito. Janelas são mais simples, seu funcionamento é baseado em ver algo do outro lado de uma parede, e sua natureza é totalmente não mágica.
O mago não sabia disso, O mago entendia muito de morte, ainda mais de magia, porém de janelas ele nada sabia. E para isso ele precisava de João.



O gato vesgo também não entendia muito de janelas, tampouco de magia ou morte, mas sua empatia era admirável. Se tinha uma coisa que o gato vesgo sabia, era compreender outros seres, e ele percebia a frustração do mago. Porque outra coisa que O mago não sabia, mas estava aprendendo, era a desistir. Desistir do jeito que se desiste de deixar a barba crescer, quando ela simplesmente não vai crescer do jeito que você quer. Viajar pelo tempo e pelo espaço não tinha mais como dar certo, não era pra ele, e ele resolveu desistir. Abriria uma maldita janela, e pela janela gritaria para o tempo-espaço dizendo que desistira, estava entregando os pontos, e imploraria para voltar à vidinha que tinha antes. O mago realmente não entendia nada de janelas.


João morria de medo da morte, e isso era tudo que ele sabia a respeito. Ele também não acreditava em magia, mas pelo sim pelo não, ele sempre achou melhor não se meter com gente muito misteriosa. Ele entendia mesmo era de janela, que era uma coisa mais simples, sem grandes mistérios, e é isso que ele ia fazer ali no bar, abrir uma janela. O mago lhe pedira que fizesse, e ele estava mesmo com vontade de fazer uma janela, assim ele ao menos veria se já era noite, e há quanto tempo estava nesse bar.
E foi o que ele fez, uma janela.


O mago esperava que a janela não mostrasse nada, apenas escuridão, pois o bar não estava em lugar algum em que houvesse algo pra se ver, ele vagava perdido pelas fendas do tempo e do espaço. O que ele não sabia é que a janela não tinha absolutamente nada a ver com isso. A natureza da janela era mostrar o que havia do outro lado da parede, e se não havia nada para se ver, alguma coisa tinha de ser criada para que houvesse algo para ver.


E algo se criou. Não que houvesse muita coisa, tudo que se via através da janela era um deserto. Um deserto vazio. Como se tudo que houvesse de neutro e irrelevante no universo tivesse se juntado para formar aquele lugar. O céu não era azul, mas também não era nublado, não tinha sol, mas também não parecia que iria chover, era apenas um céu, ou alguma coisa que estava acima. A terra não era árida, mas também não era irrigada, verdejante, era terra, dura, como se na hora de construir aquele lugar tivessem comprado o piso mais barato e colocado ali. Também não havia horizonte, a terra e o céu, ou aquilo que está no lugar da terra, e aquilo que está acima, onde deveria estar o céu, não se encontravam, apenas aparentavam algum tipo de gradiente no infinito, onde esperava-se ver a linha do horizonte.


O mago constatou que aquela ainda era parte da vingança do Tempo-espaço.
O tempo-espaço realmente não teria misericórdia do mago, caso ele chegasse a lhe pedir alguma coisa, seu trabalho era tomar conta da estabilidade dos universos. E não poderia arriscar liberando o mago novamente.
Mas ele não teve nada a ver com essa história, a culpa foi do mago, que não entendia nada de janelas, e desprezou sua natureza elementar.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

3. Ainda antes do ínicio - A chegada do construtor.



João trabalha na construção civil. E se tem uma coisa que João não dispensa, é tomar uma cerveja na sexta-feira. Mas como os botequins habituais fecharam, João voltava para casa cheio de rancor, achando que o mundo conspirava contra ele. No caminho, se deparou com um novo bar. O bar tinha uma cara estranha, provavelmente estaria cheio de gente metida e a cerveja seria cara, mas ele entrou assim mesmo. A essa altura ele pagaria qualquer coisa, e aturaria qualquer tipo de pessoa, por uma cerveja. Se ele soubesse o que o esperava dentro do lugar talvez deixasse essa cerveja pra lá.
Entrou, sentou-se a uma mesa qualquer, e ficou pensando numa janela que gostaria de fazer na sua casa, enquanto aguardava o atendimento. Olhando ao redor se deu conta que em uma mesa do canto uma menina parecia jogar damas com um gato branco, e que o barman (um sujeito bem estranho) não parecia fazer a menor questão de atendê-lo. Isso deixaria João realmente irritado, mas o lugar era tão entediante que tirava até a vontade de ficar enfurecido. Voltou então a pensar em sua janela, que era o melhor que ele podia fazer, quem sabe daqui a pouco ele fosse atendido.
Mas não foi, então João percebeu que estava sentado no bar há um bom tempo, o barman continuava no mesmo lugar, possivelmente na mesma posição, a menina já havia se retirado, e ele não conseguia ver o gato. Quando João fazia força para novamente tentar refletir sobre o que estava fazendo, e por que não ia embora dali, o gato branco pulou sobre sua mesa, João encarou por alguns momentos seus olhos estrábicos, e travaram então o primeiro diálogo dessa história com mais de uma fala.

- Olá, boa tarde, como vai? - Falou o gato meio miando meio falando, mas se fazendo entender com muita elegância
- Bem, e você?
- Estou ok - Se limitou a responder, o gato.
- Como assim ok?
- Simplesmente ok, não há nada de errado comigo.
- Que bom, entao, eu acho.
- Acho que sim. Se não for bom, ao menos não é ruim.

A conversa estava um tanto confusa, mas João levou em frente.

- O que é bom. Não ser ruim é bom, nao é?
- Não necessariamente, talvez seja simplesmente normal.Embora, às vezes, o ruim pareça ser o normal.
- De qualquer forma é melhor estar normal do que estar ruim, não?
- Penso que sim. Desde que para mim o ruim não seja o normal, senão seria ruim de qualquer maneira.

Enquanto seu cérebro se dividia entre refletir se já era hora de apenas sorrir concordando e tentar acreditar que estava realmente falando com o gato - sem muito esforço em nenhuma das direções - o gato desceu da mesa e sumiu, não demonstrando muito interesse em saber quem era o sujeito à mesa.




Funcionou. Ainda não estava nas mãos d'O mago controlar o bar para viajar para lugares específicos, mas ele conseguiu deixa-lo no caminho da pessoa de que precisava. Embora ele não tivesse certeza de como fez isso, agora não importava. O homem é um construtor, sem dúvidas, e ele irá construir a janela para O mago. Só precisa ser convencido disso.
Mas por enquanto, ele continua esperando a sua bebida.

domingo, 6 de junho de 2010

2. Antes do ínicio - O gato vesgo e a Hipocrisia.

Muitas boas histórias começam com um gato. Essa é uma delas, talvez não uma das boas, mas uma das que começam com um gato. Um gato vesgo, de pelo branco, patas compridas e esguias, que faziam seu corpo parecer desproporcional.
Apesar da sua aparência levemente esdrúxula, o gato era elegante, gentil, esperto e compenetrado. E nesse momento jogava damas com a Hipocrisia. O mago não lembrava quando diabos Hipocrisia entrou no bar, mas foi com ela que ele percebeu que as coisas estavam fugindo do seu controle, o fato é que assim que chegou, a jovem começou a deixar todos exasperados com suas bravatas, O mago em especial, que já havia pensado em muitas maneiras de se livrar dela, tão conclusivas quanto suas tentativas de viagem no tempo.
Mal haviam começado a jogar, e a jovem já iniciara seu discurso:
- Tem certeza que vai continuar jogando desse jeito? Isso pode não ter volta, e comigo é assim, acabou, acabou, sem revanche, sem melhor de três. Quando eu decidir terminar, não vai lhe sobrar chance.
Enquanto o pobre gato vesgo, só queria jogar damas. Na falta de outra companhia aceitou jogar com a moça, e seguia jogando quieto.Pobre hipocrisia, era tão distraída pelas suas verdades, que as ignorava ao se trair, e ignorava os demais achando que tinha o controle da situação.
Fingir que não via todo seu suposto controle ruir era fácil, difícil era esconder isso dos demais. E a cada passo em falso, a cada truque inútil, ficava mais evidente que a sua consciência, e sua língua, eram cavalos sem rédea, que a pequena Hipocrisia era incapaz de domar.
E o jogo acabou.
O gato passou uma de suas quatro damas por cima da última pedra da menina, que nada disse, mas que no fundo de seus olhos azuis suplicava por mais uma partida, no jogo em que ela mesma negou dar qualquer chance a um adversário derrotado, jogo em que ela, sem perceber, deu cabo de si mesma, a despeito de suas ameaças iniciais, que agora não eram nada além de um fraco espectro de vergonha.
O velho gato guardou o tabuleiro sorrindo até a ponta do bigode, ele não guardará qualquer rancor, e a criatura de singular inteligência que é, talvez até jogue uma nova partida com a menina qualquer dia desses.





domingo, 7 de março de 2010

1. O bar primordial - O começo, o fim, o meio, e um meio de voltar ao começo.

Em um lugar que ninguém lembra realmente onde é, há um bar onde tudo parece acontecer com menos vontade do que seria normal. As pessoas comem, andam e bebem calmamente e até os movéis parecem mais lentos, apesar de imóveis. O rádio toca uma música que ninguém sabe realmente o que é, que não envolve ninguém, mas tampouco os incomoda. Nada parece ser capaz de espantar os presentes, nenhum deles tem vontade de ir embora, muito embora não saibam porque estão ali.
O dono do bar é um velho mago, conhecido por um nome de mago, pronunciado em algum idioma mágico e escrito com letras mágicas, e seria inoportuno tentar chama-lo de outra coisa que não: "O mago".
O mago, há muito tempo, estudava maneiras de viajar pelo tempo e pelo espaço, mas todas as suas tentativas resultaram apenas em falhas espaço-temporais, até que lá pela vigésima vez o Espaço-Tempo resolveu tirar satisfações com ele, que acabou aprisionado em outra dimensão do espaço e do tempo e, sem muito o que fazer por lá, abriu um bar.
Além de abrir o bar, O mago continuou tentando viajar pelo tempo e pelo espaço, mas conseguiu apenas duas coisas:

1 - Fez com que o tempo passasse mais devagar, tornando sua prisão ainda mais tediosa do que já era, se é que havia tal possibilidade.
2 - Conseguiu que o bar inteiro viajasse pelo tempo e pelo espaço, porém em momentos aleatórios, e para uma lugar completamente aleatório, em uma época tão aleatória quanto.

Graças a essas viagens, vez ou outra alguém, de algum lugar do tempo-espaço, aparecia no bar. E de lá não saía, pois para manter a companhia O mago não exitava em utilizar seus poderes, e algum tipo de magia ele tinha de fazer bem.
Infelizmente depois de algum tempo algumas coisas começaram a fugir de seu controle, e ele percebeu que mesmo que quisesse seria incapaz de se livrar de muitos dos habitantes do seu bar, que pareceu criar vida própria conforme chegavam novos hóspedes, e essa vida tinha de escoar para algum lugar, mas isso são outras histórias.